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NATUREZA JURÍDICA DA LIMINAR E O “NON LIQUET” NA ESFERA MANDAMENTAL

J. E. Carreira Alvim

NATUREZA JURÍDICA DA LIMINAR E O “NON LIQUET” NA ESFERA MANDAMENTAL

 

 

J.E. Carreira Alvim, doutor em Direito pela UFMG.

 

Sumário: 1. Considerações prévias. 2. Ato comissivo e omisso do poder público e medida liminar. 3. Natureza jurídica da decisão liminar mandamental. 4. Responsabilidade na efetivação da medida liminar. 5. Requisitos para a concessão da liminar. 6. Non liquet na esfera mandamental. 7. Conclusão.

 

1 Considerações prévias

 

O mandado de segurança é um dos institutos mais prestigiados do ordenamento jurídico, estando inscrito no art. 5º, inciso LXIX da Constituição, como ação individual, e no inciso LXX desse mesmo artigo, como ação coletiva, para proteger direito líquido e certo, não amparado por habeas corpus ou por habeas data, quando o responsável pela ilegalidade ou abuso de poder for autoridade pública ou agente de pessoa jurídica no exercício de atribuições do Poder Público.

Apesar de inserido no âmbito da jurisdição constitucional das liberdades, o mandado de segurança tem sido alvo do poder público, na limitação da sua eficácia, seja fixando o prazo para a impetração em 120 dias (Lei 12.016/09: art. 23), seja proibindo a concessão de medidas liminares (Lei 12.016/09: art. 7º, § 2º)[1], seja restringindo o alcance da sentença (Lei 9.494/97: art. 2º)[2].

 

2 Ato comissivo e omisso do poder público e medida liminar

 

Se interpretado na sua literalidade o art. 7º, III,[3] da Lei n. 12.016/09, tem-se a impressão de que o mandado de segurança só se destina a coibir ato comissivo dos agentes públicos, pois determina esse dispositivo que, ao despachar a inicial, o juiz ordenará que se suspenda o ato que deu motivo ao pedido quando houver fundamento relevante e do ato impugnado puder resultar a ineficácia da medida, caso seja finalmente deferida, sendo facultado exigir do impetrante caução, fiança ou depósito, com o objetivo de assegurar o ressarcimento à pessoa jurídica.

A suspensão de um ato que tenha dado motivo ao pedido só pode ocorrer quando se trate de ato comissivo, ou seja, que resulte de uma atividade (um fazer) administrativa, pois somente estes têm conteúdo substancial, sendo capazes de ser temporariamente tolhidos na sua eficácia, através da sua suspensão. Dentre estes, destacam-se os que indeferem, no todo ou em parte, a pretensão administrativa, pois os que a deferem integralmente satisfaz o interesse da parte. Tais atos comportam mandado de segurança em caráter repressivo.

No comportam a suspensão, porém, os atos omissivos, resultantes de uma omissão (um não fazer) administrativa, pois estes, não tendo sido ainda praticados, nem poderiam ser suspensos.

Existem, também, atos administrativos em potencial, que ainda não foram, mas na certa serão praticados, dando ensejo à impetração de mandado de segurança em caráter preventivo, passíveis de serem neutralizados antes mesmo de serem praticados.

Como tanto os atos comissivos, reais ou potenciais, quanto os atos omissivos, podem causar lesão ao direito líquido e certo do impetrante, quaisquer deles podem ser impugnados pela via mandamental, embora somente os atos comissivos possam ser liminarmente suspensos.

Ante essa diversidade de conteúdo do ato administrativo, cuidou a doutrina de construir os postulados da liminar mandamental, viabilizando-a não apenas em caráter cautelar, mediante a suspensão do ato impugnado (Lei 12.016/09: art. 7º, III), como em caráter provisório, mediante a concessão da tutela específica (CPC: art. 497, caput).

Quando se impugna um ato comissivo da administração, o que se pretende em sede jurisdicional é o seu desfazimento, ou um ato judicial que o anule, e, quando se impugna um ato omissivo, o que se deseja é o seu fazimento, ou um ato judicial que supra a inércia da Administração.

Registre-se, por oportuno, que apenas os atos omissivos que se encaixam na tutela do habeas data (Lei n. 9.507/97) ficam fora da tutela pela via do mandado de segurança

 

3 Natureza jurídica da decisão liminar mandamental

 

A medida versada no art. 7º, inciso III da Lei 12.016/09, que autoriza o juiz a suspender de plano e ex officio o ato impugnado, tem natureza cautelar, e cobre apenas as hipóteses em que pretenda o impetrante a simples suspensão do ato impugnado, mas, não, aquelas em que se pretenda um provimento de conteúdo positivo –, como, por exemplo, a concessão liminar de um benefício previdenciário –, caso em que a decisão terá a natureza de tutela antecipada de mérito.

A diversidade do procedimento, em se tratando de ato comissivo ou omissivo, está na diversa natureza jurídica destes, pois, no primeiro caso, trata-se de simples tutela cautelar, que comporta concessão até mesmo de ofício, enquanto, no segundo, trata-se de tutela específica (de fazer), que, mesmo no âmbito do processo civil, só pode ser concedida a requerimento da parte (CPC: art. 497, caput). Ademais, no primeiro caso, a decisão judicial se limita a neutralizar os efeitos do ato comissivo, mantendo o statu quo, enquanto, no segundo, tem o escopo inovador, alterando o statu quo, e, desta forma, antecipando o gozo do próprio direito subjetivo invocado na inicial. A primeira modalidade de tutela resulta de uma interlocutória simplesmente processual, enquanto a segunda, de uma interlocutória de mérito, embora a eficácia de ambas se projete, temporalmente, na esfera jurídica das partes envolvidas na lide. Na hipótese de ato omissivo de agente público, a natureza da decisão liminar tem sempre a natureza de tutela específica, por não comportar pedido de suspensão, nos termos do art. 7º, III da Lei 12.016/09.

Em se tratando de tutela cautelar, embora deva o juiz concedê-la de ofício, nada impede seja também requerida pelo impetrante, mas, em se tratando de tutela antecipatória de mérito, não deve o juiz, de regra, concedê-la, ex propria auctoritate, devendo fazê-lo a pedido da parte.

Portanto, constitui equívoco atribuir natureza cautelar ou antecipatória à decisão proferida em mandado de segurança, pois tudo dependerá do conteúdo do ato e do seu caráter (comissivo ou omissivo), a determinar o propósito de assegurar a eficácia da jurisdição mesma ou de antecipar o gozo do próprio direito subjetivo postulado pela parte.

 

4 Responsabilidade na efetivação da medida liminar

 

Em princípio, a concessão da medida liminar gera um benefício para o impetrante e um malefício para a parte contrária (pessoa jurídica interessada), que se vê desta forma obrigada a satisfazer à pretensão amparada num juízo de probabilidade (ou credibilidade), que pode a final revelar-se não verdadeiro. Daí resultar, também em princípio, o dever de a parte beneficiária da liminar ressarcir à outra os prejuízos que tenha experimentado com a efetivação da medida, independentemente da existência de culpa ou dolo.

Na prática, a efetivação da liminar causa prejuízos à parte contrária quando, por exemplo, antecipa ao impetrante um direito ou uma vantagem que a sentença venha a ter por inexistente, devendo a reparação ser feita mediante a devolução dos valores injustamente recebidos, devidamente atualizados (com juros moratórios e correção monetária). No fundo, não é a simples concessão da liminar que causa o prejuízo à parte contrária, mas a sua efetivação, pois é esta que altera a situação jurídica das partes na esfera do direito material; pelo que, se a liminar for concedida, mas não efetivada, não resultará daí nenhum prejuízo, e, consequentemente, nenhum dever de reparação.

As medidas simplesmente cautelares, concedidas ou de ofício ou não, podem não causar prejuízo algum à outra parte, como sucede, por exemplo, na suspensão do ato administrativo que cancela um benefício previdenciário, e que, a final, veio a ser reconhecido como devido pela sentença. Mas, podem causar, como na hipótese de suspensão do ato de nomeação de um candidato, a pedido do impetrante, vindo essa nomeação a ser mantida pela sentença. Diversamente ocorre em se tratando de efetivação de tutela antecipada, pois, nessa hipótese, haverá antecipação da prestação jurisdicional, e, denegada a segurança, sempre haverá prejuízo a ser reparado, por menor que seja.

Por essa razão, não deve o juiz suspender ex officio a eficácia do ato impugnado, a não ser quando se trate de medida cautelar, sem qualquer possibilidade de repercussão negativa no patrimônio da outra parte; do contrário, deve suspender a eficácia do ato somente se houver pedido da parte interessada neste sentido.

Portanto, havendo alegação de prejuízo, não se cuida de apurar a culpa, que se presume no caso, como na responsabilidade objetiva (iuris et de iure), mas apenas de proceder à liquidação sobre a extensão dos danos, para fins de ressarcimento, sejam esses danos materiais ou simplesmente morais. A liquidação obedece, nesse caso, ao disposto no Código de Processo Civil, aplicável subsidiariamente.

 

  1. Requisitos para a concessão da liminar

 

Alguns requisitos são legalmente exigidos para a suspensão ato comissivo, o que ocorre quando houver fundamento relevante e do ato impugnado puder resultar a ineficácia da medida, caso seja finalmente deferida (Lei 12.016/09: art. 7º, III).

Na sua conceituação moderna, afirma Cândido Dinamarco[4], a demanda traduz o ato de alguém ir a juízo pedir a tutela jurisdicional, e tem por conteúdo a pretensão, que, na linguagem de Carnelutti, é a “exigência de subordinação de um interesse alheio ao interesse próprio”.

Registro, por oportuno, que o art. 7º, III da Lei n. 12.016/09 não fala em fundamento da demanda, limitando-se a autorizar a suspensão do ato que deu motivo ao pedido quando houver fundamento relevante. Em princípio, pareceu-me que a relevância deveria ser referida ao pedido, mas, pensando melhor, parece-me que deve ser referida à causa de pedir, pois nesta residente os fundamentos jurídicos do pedido, e tais fundamentos é que devem ter certa relevância para autorizar a suspensão do ato impugnado, ou a concessão da tutela específica. Os fundamentos jurídicos, doutrina Cândido Dinamarco[5], consistem na demonstração de que os fatos narrados se enquadram em determinada categoria jurídica (por exemplo, que eles caracterizam dolo da parte contrária) e de que a sanção correspondente é aquela que o demandante pretende (por exemplo, anulabilidade do ato jurídico, com a consequência de dever o juiz anulá-lo.

Segundo a teoria da substanciação, os fundamentos jurídicos do pedido correspondem à causa próxima do pedido, consistente nas alegações (base jurídica) que sustentam o pedido. Assim, na ação mandamental, o fundamento jurídico do pedido é a ilegalidade cometida pelo agente público, por desvio, abuso ou excesso de poder. Dependendo da relevância desse fundamento — por exemplo, edital direcionado para realização de obra de grande vulto, que uma vez iniciada não pode ser paralisada — cabe ao juiz o exame dessa alegação, em função da prova produzida, e suspender ou não o edital. Nesse exame, não basta que os fundamentos jurídicos (base jurídica) tenham relevância, mas que o pedido mediato (a anulação do edital) se mostre viável, segundo um juízo de probabilidade potencializado, de forma a prenunciar procedência da impetração.

 

  1. Non liquet na esfera mandamental

 

Tem-se ensinado em sede doutrinária que ao juiz moderno –, diversamente do que ocorria com o juiz (iudex) na Roma antiga –, não é dado pronunciar o non liquet, com o que a causa restaria imprejulgada e denegada a justiça no caso concreto.

De uma maneira geral, assim é, sobretudo nos processos disciplinados pelo Código de Processo Civil (de conhecimento, de execução e cautelar), mas não no processo do mandado de segurança.

A expressão latina non liquet significa que “não está claro”, e, no mandado de segurança, em que a impetração se apoia na prova preconstituída (documental) do direito líquido e certo, não havendo essa clareza no espírito do juiz, por dependerem os fatos de dilação probatória, que esse processo não comporta, o juiz pronuncia um verdadeiro non liquet, pois a improcedência da ação mandamental, não impede que a parte pleiteie os seus direitos pela ação própria.

Neste sentido, dispõe o art. 19 da Lei 12.016/09 que: “A sentença ou o acórdão que denegar mandado de segurança, sem decidir o mérito, não impedirá que o requerente, por ação própria, pleiteie os seus direitos e os respectivos efeitos patrimoniais”.

Se o alegado direito líquido e certo não se apoiar em fatos demonstrados mediante prova preconstituída (documental), não terá o impetrante a oportunidade de demonstrá-lo no curso do processo mandamental, não restando ao juiz outra alternativa senão denegar a segurança, caso em que, não tendo examinado o mérito, fica aberta à parte a chance de socorrer-se da ação e processo de conhecimento (de rito comum) para demonstrar o seu direito. Nesta hipótese, o juiz afirma apenas a falta de liquidez e certeza do direito, mas não a sua inexistência, ou seja, que o impetrante não é titular de um direito líquido e certo. Mas, se, ao contrário, diante da prova exibida, concluir o juiz que o impetrante não tem direito líquido e certo nem direito algum, nesta hipótese terá julgado o mérito, e, na ausência de recurso, a sentença transitará em julgado, produzindo coisa julgada material.

Hipótese análoga vem prevista no art. 6º, § 6º da Lei n. 12.016/09, dispondo que: “O pedido de mandado de segurança poderá ser renovado dentro do prazo decadencial, se a decisão denegatória não lhe houver apreciado o mérito”; significando que, se a segurança vier a ser denegada por questão de natureza processual (falta de condições da ação ou de pressupostos processuais), poderá a parte, uma vez preenchida a condição ou satisfeito o pressuposto, voltar a postular a satisfação do seu direito pela mesma via mandamental.

 

  1. Conclusão

 

Do exposto, conclui-se, de um lado, que, no processo de mandado de segurança, não se pode afirmar, a priori, que a decisão liminar tenha natureza cautelar ou antecipatória, pois isso depende caso concreto, e, de outro, que, nesse processo, permite-se que o juiz pronuncie o non liquet, sempre que constatar que falta clareza ao alegado direito, por carecer das características de liquidez e certeza, denegando assim o pedido de segurança.

 

[1]  Art. 7º (…) § 2o  Não será concedida medida liminar que tenha por objeto a compensação de créditos tributários, a entrega de mercadorias e bens provenientes do exterior, a reclassificação ou equiparação de servidores públicos e a concessão de aumento ou a extensão de vantagens ou pagamento de qualquer natureza. (…) 

[2] Art. 2o-B.  A sentença que tenha por objeto a liberação de recurso, inclusão em folha de pagamento, reclassificação, equiparação, concessão de aumento ou extensão de vantagens a servidores da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, inclusive de suas autarquias e fundações, somente poderá ser executada após seu trânsito em julgado

[3] Art. 7º Ao despachar a inicial, o juiz ordenará: III – que se suspenda o ato que deu motivo ao pedido, quando houver fundamento relevante e do ato impugnado puder resultar a ineficácia da medida, caso seja finalmente deferida, sendo facultado exigir do impetrante caução, fiança ou depósito, com o objetivo de assegurar o ressarcimento à pessoa jurídica. 

[4] DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de Direito Processual Civil. São Paulo: Malheiros, 2001, v. II, p. 102.

 

[5] DINAMARCO, Cândido Rangel. Op. cit., p. 127.

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